O abuso sexual é um termo utilizado para uma série de crimes, sendo o mais registrado o crime de estupro de vulnerável, que é a prática de ato libidinoso ou a conjunção carnal com uma pessoa menor de 14 anos, ou que não tenha capacidade de reagir por ter alguma deficiência física ou intelectual.
Casos de violência e de abuso sexual contra crianças e adolescentes são mais comuns do que se imagina, e estão cada vez mais presentes nos noticiários. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgado no dia 10 de setembro, dos mais de 66 mil registros de violência sexual de 2018, mais de 63% são praticados contra crianças e adolescentes de até 13 anos. O relatório aponta que em Mato Grosso do Sul foram 1.934 casos, sendo 84,7% deles, contra mulheres e meninas.
Diante dos dados, surgem diversas perguntas: Quais as características de um abusador? Como identificar o abuso sofrido por uma criança? O que fazer diante dessa suspeita? Quem procurar? Como combater esse tipo de crime? A delegada titular da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (DEPCA) Marília de Brito, ajuda a esclarecer essas dúvidas, e orienta sobre diversos aspectos que envolvem abusos contra menores de idade.
Sinais – O primeiro sinal a ser observado é uma possível mudança no comportamento habitual da criança. “Teve alguma modificação brusca de comportamento? É importante analisar isso, buscar a origem. As vezes a aproximação demasiada de alguém, ou um antagonismo muito severo com relação aquela pessoa. Queda no rendimento escolar, ansiedade, depressão, automutilação, isolamento. Todos esses são elementos de que alguma coisa está errada. O abuso traz esses sinais”, alerta a titular da DEPCA. O passo seguinte é buscar entender o que foi que aconteceu. “Se foi um abuso, se foi uma violência, se foi um fato comum da vida que deixou essa criança desse jeito”, descreve.
Perfil – Não existe um perfil específico de abusadores, pois eles podem estar em qualquer lugar, em toda classe econômica, e em todos os ambientes. Mas de acordo com ela, esses indivíduos geralmente tendem a permanecer em ambientes de convívio de crianças. “Locais que dão a ele, acesso a essas crianças. Mas também tem aquele abusador de gerações. Que abusa da filha, da neta, da bisneta, da sobrinha, e da geração inteira da família”, contextualiza.
Quem pratica? – Estatísticas apontam que a maioria, 75,9% dos casos de estupro de vulnerável são praticados dentro do ambiente familiar, por padrastos, vodrastos, avós, pais e tios. “Esse é um ponto delicado. É muito difícil um filho chegar para uma mãe, e falar que o pai, o padrasto, o vô ou vodrasto, esta abusando sexualmente. Encarar tudo aquilo com veracidade e fazer o rompimento do vínculo, é uma dor que atinge toda família”. Muitas vezes a criança sente vergonha e até culpa, e com isso acaba não relatando a ninguém o abuso sofrido.
Danos – Há casos em que a vítima conta, e acaba não sendo levada a sério por quem deveria protege-la causando danos psicológicos para a vida inteira. “Geralmente o agressor é quem deveria proteger aquela criança. Então aquela criança não tem voz. Porque quem deveria dar a voz e a proteção é quem pratica a violência. Então para aquela criança sair daquele ciclo de violência é muito mais difícil. Geralmente também, a família tem muita dificuldade de crer na palavra da vítima. E o fato daquele que deveria ter tomado atitude, que deveria ter procurado as autoridades, não ter feito, causa mais dor” pontua a delegada.
Superação – Para esses casos, há uma situação que segundo ela, é recorrente na DEPCA. O registro postergado é uma libertação para aquela mulher já adulta que carregou por anos a dor da culpa. “São pessoas com 30, 40 anos, que vem até a delegacia registrar ocorrências para notificar fatos de quando eram ainda crianças. A gente registra, e entende que esse é um processo da pessoa. Em alguns casos, os crimes já prescreveram, e não tem mais o contexto. Mas acolhemos e entendemos que esse é um processo da pessoa de vencer aquela barreira, e resolver aquilo consigo mesma”, afirma.
Tempo – O contexto familiar está entre os pontos ressaltados pela titular da DEPCA. “Quando a gente fala de violência contra a criança, estamos falando da base da sociedade que é a família. E o que nós temos que fazer? Fortalecer a família. Buscar a não terceirização da educação do filho. Hoje a gente terceiriza muito. Pouco se sabe da vida do filho, seja ele criança, seja ele adolescente. E quando há essa ausência dos pais, há essa ausência daquele que tem que cuidar, deixando essa criança, esse adolescente mais vulnerável do que ele já é”, descreve, referindo-se a vida moderna, onde compromissos e a correria do dia a dia acabam tomando todo tempo dos pais. A orientação é não deixar o filho sozinho, não deixar com qualquer um, instruir a criança.
Educação – Junto ao fortalecimento da família, a delegada defende a educação no sentido de orientação conforme a idade da criança. “Não é educar para o sexual. Mas a criança tem que ser educada para saber sobre o que é o próprio corpo, o que ela tem direito, o que o outro pode fazer. Quem que pode toca-la, o que é um toque bom, o que é um toque ruim. Porque muitas crianças, muitas vítimas, elas não entendem que aquilo se trata de um abuso sexual”, afirma, reforçando que não se deve deixar a criança com qualquer pessoa. “Esse é um ponto que a gente tem que conversar, talvez formatar uma política pública clara. Tratar isso de forma mais aberta, para que as crianças sejam devidamente instruídas no sentido de protege-las”.
Ciclo – O abuso de vulnerável é o início de um ciclo que acaba gerando outros tipos de crime. “A gente sabe que a violência de gênero é cultural. Essa visão da mulher, do sexo feminino como objeto, isso vem de muito tempo. Essa violência não passa a existir a partir do momento que a mulher fica adulta. Ela acontece muito antes com as meninas, que são as maiores vítimas, seja com maus tratos ou com abusos sexuais. Como é que a gente vai combater a violência de gênero? Com educação. E a gente tem que trabalhar no combate a esse tipo de crime, que infelizmente a gente sabe que os números de estupro no Brasil todo, a grande maioria são referência a crianças e adolescentes”.
Denuncia – As denúncias chegam a DEPCA de diversas formas. “Seja denúncias de disk 100, registros de boletim de ocorrência (BO), notícia nas escolas, que sabendo tratar o assunto levam isso para as autoridades, protegem aquela criança, acionando a rede de atendimento, que envolve o trabalho dos conselhos tutelares e o trabalho da justiça”, explica.
Numeros – Com relação aos números referentes a estupro de crianças e adolescentes, a delegada Marília classifica como positivo o fato de terem aumentado, por se tratar de crime subnotificado. “Talvez a questão de nós termos números significativos no Sinesp (Ministério da Justiça) seja um ponto positivo para MS, porque se nós estamos falando de uma violência subnotificada, onde apenas 2% dos casos chegam as autoridades policiais. Então nós enquanto Estado estamos fazendo uma política pública correta, de rede de atendimento a criança, não só de delegacia de polícia. É um dado importante, porque dar voz a essa criança de direitos violados é muito difícil”, explica.
Humanização – O papel da DEPCA é de acolhimento humanizado. A equipe é composta integralmente por mulheres treinadas para estabelecer uma relação de confiança com as vítimas, de modo a concluir o inquérito que dura em média 30 a 60 dias. “Aqui nenhuma criança ou adolescente é abordada por policiais, não que eles não tenham essa condição especifica, porque todos passam por cursos. Mas nós temos o setor multidisciplinar formado por psicólogas, assistentes sociais, pedagogas, e com formação jurídica também. Todas passaram por cursos para acolher essas crianças da melhor maneira, e fazer os depoimentos especiais conforme a nova legislação”. Só em 2019, até 31 de agosto, já foram registrados 335 casos de estupro de vulnerável em Campo Grande.
Interior – Sobre os atendimentos com esse enfoque no interior do Estado, ela explica que nas regionais existem as Delegacias da Mulher, que também possuem atribuição de investigação de crimes sexuais envolvendo crianças e adolescentes. Nas demais cidades, esse trabalho se concentra nas Delegacias de Polícia (DP´s) que trata esses casos de maneira especifica. “Dentro de um processo técnico nós temos também a formação de 60 policiais, entre delegados, investigadores e escrivães de polícia passaram por curso recentemente. Então a ideia é cada vez mais formar policiais capacitados para fazer essa abordagem”, conclui.
› FONTE: Portal do MS