No Brasil, 28% das crianças de 4 e 5 anos matriculadas na pré-escola estudam em estabelecimentos sem todos os itens de saneamento básico, ou seja, não têm acesso a pelo menos um desses serviços: água filtrada, esgotamento sanitário e coleta de lixo. Nas creches, 21% das crianças até os 3 anos de idade não têm acesso ao serviço básico. Os dados são do Observatório do Marco Legal da Primeira Infância (Observa).
A creche onde Lidia Rangel é diretora, em Mesquita, no estado do Rio de Janeiro, é uma delas. “É muito difícil. Aqui na instituição, nós ficamos uma base de cinco dias sem água. Ontem que chegou a água para fazer alimentação, para poder dar banho, fazer a higiene pessoal”, disse. “As educadoras tiveram que trazer de casa a água. Eu precisei trazer o almoço já pronto para as crianças e nós tivemos que avisar os pais que elas iam para casa sem banho”, contou.
Há duas semanas, as aulas presenciais foram retomadas na creche a pedido das famílias. Apenas os estudantes em situação mais vulnerável estão sendo atendidos e o número de professoras também está reduzido, por conta da pandemia do novo coronavírus.
“Estamos aqui para ajudar as crianças, elas vêm para serem alimentadas. Se eu mandar voltar por falta d&39;água, eu estou quebrando o serviço e a criança fica prejudicada”, contou, ressaltando que os serviços de saneamento faltam não apenas na escola, mas em toda a comunidade e muitas vezes nas casa dos próprios alunos.
A falta de saneamento básico impacta diretamente a saúde e a qualidade de vida, que, pelo Marco Legal da Primeira Infância, Lei 13.257/2016, devem ser garantidas às crianças. Sem saneamento, tanto as crianças quanto o restante da população ficam mais expostas a doenças como hepatite A, verminoses, dengue e outras arboviroses e à própria covid-19, uma vez que uma das recomendações para evitar o contágio é lavar as mãos com frequência.
Se a falta de saúde, educação, saneamento básico e outros serviços tem consequências na vida de qualquer pessoa, na primeira infância, etapa que vai até os seis anos de idade, ela pode ser ainda mais grave, de acordo com a coordenadora técnica da plataforma Observa, Diana Barbosa.
“A gente está falando de uma etapa do desenvolvimento que abre uma série de possibilidades. É como se fosse uma janela de desenvolvimento para essa criança, em que ela tendo acesso aos estímulos adequados, tendo as condições econômicas adequadas, ela pode ter um avanço significativo no seu desenvolvimento”, explicou.
Os dados da Observa mostram, ainda, que há desigualdades entre regiões do país, localização das escolas - se estão em áreas urbanas ou rurais -, e mesmo relativas à cor e raça dos estudantes.
A região Norte tem a maior porcentagem de matrículas em escolas sem saneamento básico, 75% das crianças matriculadas em pré-escolas e 71% das matriculadas em creches não têm acesso a esses serviços. Na região Sudeste, estão as menores porcentagens, apenas 6% das matrículas em pré-escolas e 5% em creches não têm acesso a saneamento básico. O levantamento considera as escolas que não têm pelo menos um dos itens de saneamento.
Em todo o país, 80% das matrículas em creches localizadas em áreas urbanas e 55% em creches de áreas rurais contam com todos os itens de saneamento. Entre as pré-escolas, essas porcentagens são 76% e 47%, respectivamente.
De acordo com o observatório, mais crianças negras estudam em áreas de maior vulnerabilidade do que crianças brancas. Faltam itens de saneamento básico nas creches onde estão matriculadas 27% das crianças negras e nas pré-escolas onde estão 34% delas. Entre as crianças brancas esses percentuais são menores: 15% estão matriculadas em creches sem saneamento e 17% em pré-escolas sem esses serviços.
“O que a gente percebe hoje é que a gente ainda não consegue chegar. A gente avançou muito em vários aspectos, mas a gente não conseguiu chegar para essas múltiplas infâncias. Não existe uma primeira infância, existem várias. Uma criança negra que mora em uma região periférica vulnerabilizada socialmente vive uma realidade completamente diferente de uma criança branca em uma área mais privilegiada socioeconomicamente”, disse Diana.
As desigualdades existem também entre cidades dentro de um mesmo estado e entre bairros. De acordo com a secretária executiva da Rede Primeira Infância de Pernambuco, Solidade Menezes Cordeiro, no estado a falta de saneamento básico é mais grave no interior do que na capital. Construção de cisternas, abastecimento por carro-pipa e o uso de poços artesianos fazem parte do cotidiano de parte da população de Pernambuco.
“Isso é imprescindível. Uma cidade com saneamento básico é o básico para que as crianças tenham dignidade”, opinou. “Nos bairros onde não há saneamento básico, os postos de saúde ficam superlotados de crianças alérgicas, de crianças com alta complexidade de verminoses e também com anemia, porque a alimentação não é digna”, complementou.
Em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, falta saneamento básico na escola onde Edileide de Lima é diretora. Lá, a água vem de uma cacimba, que é uma espécie de poço, e para os dejetos é usado um sumidouro. Para beber, é preciso comprar água mineral. “Isso já uma questão [no município] de antes da pandemia, é de anos, não é de agora. Precisa de uma pressão forte para mudar”, opinou.
A disponibilidade ou não de serviços de saneamento básico é uma questão que deverá ser levada em consideração na decisão pelo retorno ou não das aulas presenciais nas escolas, que seguem funcionando de maneira remota na maior parte do país por conta da pandemia. Principais responsáveis pela educação infantil, etapa que compreende a creche e a pré-escola, caberá aos novos gestores municipais eleitos este ano tomar essa decisão.
A eles caberá também adaptar os municípios ao novo Marco Legal do Saneamento, que prevê a universalização do acesso ao saneamento básico até 2033. Os novos prefeitos deverão atender as exigências da lei para acessar recursos para melhoria desses serviços, como participar de consórcios regionais com outras cidades na prestação dos serviços, aderir a uma agência reguladora e estabelecer novos mecanismos de cobrança.
“O desafio do saneamento é um desafio para as estruturas de educação, mas também é um desafio para além das estruturas de educação. Ao se falar de saneamento a gente está pensando em estruturas da cidade como um todo. É essencial ter um saneamento adequado. A gente sabe que, no contexto da pandemia, o acesso ao saneamento é um estrutura essencial para a população”, afirmou a também coordenadora técnica da Observa, Thaís Malheiros.
Na plataforma Observa estão disponíveis também outros indicadores das áreas de educação, assistência social e saúde, além de outras informações relativas ao acompanhamento de políticas públicas voltadas a primeira infância.
A plataforma é uma realização da Rede Nacional Primeira Infância (RNPI), formada por mais de 260 organizações de todas as regiões do país. A Andi - Comunicação e Direitos é responsável pela implementação do projeto, que conta também com a parceria da Fundação Bernard van Leer.
› FONTE: Agência Brasil